Apreciação filosófica do filme Memento

Atenção: Este artigo contém spoilers do filme.

Neste ensaio irei fazer uma apreciação filosófica do filme Memento, de Christopher Nolan. Este filme estreou nos cinemas em 2001 e aborda diversos temas filosóficos, especialmente inseridos na categoria da mente e da metafísica, tais como: o dualismo mente-corpo, os sentidos, a identidade pessoal e a ética.

 O filme Memento retrata a história de Leonard Shelby, um homem que depois de um assalto a sua casa, em que a sua mulher foi violada e assassinada, fica incapacitado de criar novas memórias. Mesmo com esta condição, Leonard tenta descobrir quem foi o assassino da sua mulher. Mas como é que irá este conseguir juntar as pistas e prosseguir com uma investigação não se conseguindo lembrar de nada desde o trágico assalto? O personagem dá a volta à situação tirando fotos e anotando informações necessárias para o desenvolvimento do caso. Fazendo tatuagens com as informações mais importantes em relação ao assassino. O que nos leva para um problema filosófico que divide os filósofos: o dualismo mente-corpo. Dado ao facto de o personagem utilizar o seu corpo (marcando-o com tatuagens) como se fosse a sua mente (os factos que ele não consegue guardar).

René Descartes acredita que a mente e o corpo são duas coisas distintas que estão ligadas entre si, influenciando-se. A mente é principalmente pensante, não espacial, já o corpo prolonga-se no espaço e está sujeito às leis da física. Para sustentar a sua teoria o filósofo examina as definições de mente e corpo, mostrando como têm características diferentes, são distintas. Sendo a mente uma substância imaterial e o corpo material.

Alguns filósofos e críticos discordam desta ideia, argumentando que não é clara a forma como as interações entre o corpo e a mente ocorrem, questionando como é que uma substância imaterial (a mente) influencia uma substância material (o corpo) e vice-versa. Esta teoria defende que a mente está localizada na glândula pineal do cérebro, o que nunca foi confirmado pela ciência, fazendo com que surjam dúvidas em relação a esta teoria. Descartes parece dar mais importância à mente, sendo por ele considerada a principal substância, o que pode levar a uma invalidação da influência do corpo sobre a mente, que têm sido provadas pela ciência ultimamente. Alguns críticos acreditam que não há evidências suficientes para sustentar substâncias imateriais, sendo por isso difícil acreditar na mente que Descartes acredita.

Thomas Hobbes e Ludwig Feuerbach defendem o monismo materialista, esta teoria argumenta que tudo pode ser reduzido a processos físicos e materiais. Sendo a mente considerada o resultado das atividades cerebrais, rejeitando a dualidade mente-corpo. Considerando a mente e o corpo ambos são uma única substância material. A mente é considerada uma manifestação da matéria que constitui o corpo. Esta abordagem é determinista e enfatiza causas físicas adotando uma posição empírica e científica. 

Algumas das objeções feitas a esta teoria referem que esta tem dificuldades em explicar a experiência subjetiva e as qualidades qualitativas da consciência. Acreditam que a natureza da experiência consciente é algo além das interseções entre partículas materiais. Ao se focar apenas em processos físicos esta teoria enfrenta problemas em explicar como é que as atividades cerebrais podem dar origem à consciência. O ponto de vista determinista associado a esta ideia levanta questões sobre o livre arbítrio, visto que se tudo é determinado por causas físicas, a liberdade de escolha pode estar comprometida. As experiências fora do corpo desafiam esta teoria, dado ao facto de algumas pessoas experienciarem momentos que parecem transcender o próprio corpo, até a matéria.

O idealista monismo é defendido por George Berkley, este argumenta que a única coisa real são as mentes e as ideias que estas percebem, não havendo matéria independente da mente e a existência dos objetos depende de serem percebidos por mentes. Rejeitando a distinção entre objeto e perceção, defendendo que a realidade é subjetiva e dependente das experiências individuais da mente.

Os críticos questionam a ideia de que a realidade depende exclusivamente da perceção das mentes, pois os objetos podem existir independentemente da observação humana e a realidade, como provado pela ciência, é regida por leis da física que são também independentes da observação humana. Esta teoria também tem dificuldades em explicar as experiências coletivas compartilhadas por várias pessoas (mentes).

Já Gilbert Ryle rejeita a divisão entre a mente e o corpo, acreditando que a mente pode ser compreendida através de um comportamento observável, eliminando assim a necessidade de uma substância separada. O filósofo critica a ideia dos estados mentais primitivos, introduzindo o conceito de “disposições” para explicar as tendências comportamentais habituais associadas a estados mentais. Esta teoria enfatiza a tradução da linguagem mental para o comportamento e a rejeição do “erro da mente” que exige uma entidade mental distinta. 

Este argumento é criticado porque faz uma excessiva ênfase no comportamento observável, o que pode negligenciar aspetos internos da experiência mental, como pensamentos e sentimentos, que não são diretamente observáveis, mas têm uma grande importância na vida mental. Esta teoria não apresenta uma explicação para a experiência subjetiva, sendo a sua perspetiva focada no comportamento o que pode ser inadequado para tratar aspetos qualitativos da consciência. Ryle é criticado por tentar traduzir toda a linguagem mental e corporal, sem reconhecer a complexidade e riqueza das experiências mentais internas.

De acordo com o filme parece-me que a ideia mais acertada é o monismo materialista, visto que esta dá bastante relevância ao corpo e é neste que Leonard segue a sua linha de pensamento, seguindo as tatuagens e deixando notas nas fotos, sendo a sua mente subordinada ao corpo, agindo de acordo com impulsos e informações físicas.

Na minha opinião, o argumento que faz mais sentido é o de Descartes. A mente sempre foi e continuará a ser um grande problema filosófico, então é normal que Descartes tenha algumas dúvidas em explicar o que esta é e como funciona, até porque para mim é algo inexplicável, considero por isso a mente uma substância imaterial. Se fosse algo material, já se teria resolvido este assunto ou estaríamos perto de o resolver. Mas mesmo com esta falta de explicação é na sua teoria que revejo os meus pensamentos sobre o assunto. Acredito que o corpo é uma substância material, constituída por átomos, que é influenciada, influencia e interage com a mente. 

Ao longo do filme percebemos que nem sempre podemos confiar nas nossas memórias. Num certo momento Leonard diz: “Memory can change the shape of a room; it can change the color of a car. And memories can be distorted. They’re just an interpretation, they’re not a record, and they’re irrelevant if you have the facts.” (A memória pode mudar a forma de uma sala, pode mudar a cor de um carro. E as memórias podem ser distorcidas. Elas são apenas uma interpretação, não a gravação, e elas são irrelevantes se tu tiveres os factos). A criação de memórias está intrinsecamente relacionada com os sentidos. O que me faz questionar se podemos confiar plenamente nos mesmos?

Os céticos acreditavam que não podíamos confiar de todo nos nossos sentidos. Para chegar a esta conclusão formularam o argumento das ilusões dos sentidos: As pessoas fazem juízos sobre os objetos a partir das impressões percebidas pelos sentidos. As impressões percebidas pelos sentidos dão-nos a aparência das coisas (são ilusórias) e não a sua natureza real. Logo, os juízos sobre a natureza dos objetos não estão propriamente justificados (são baseados em ilusões).1

As objeções a este argumento afirmam que os sentidos são fundamentais para a nossa sobrevivência e que desempenham uma grande função na nossa vida.

René Descartes abordou também este tema. Enquanto estava em busca da sua verdade indubitável, aceitando o desafio cético, adotou a dúvida metódica, um género de teste cético. Numa das fases da mesma desvalidou todas as crenças a posteriori, ou seja, crenças que têm por base os sentidos, recorrendo ao argumento das ilusões dos sentidos, referido anteriormente, e criando o argumento dos sonhos: Em estados de sonho, as experiências parecem tão reais quanto as experiências de vigília. Não há critérios infalíveis para distinguir conclusivamente entre o estado de sonho e o estado de vigília. Logo, podemos estar num estado de sonho onde todas as nossas experiências são ilusórias.

As objeções a este argumento, não o refuta, mas realçam a complexidade na relação entre o sonho e a realidade. Uma dessas objeções defende que mesmo nos sonhos, a consciência do “eu” persiste, o que sugere uma base sólida para a certeza.

David Hume defende que as experiências sensoriais vividas dão origem às ideias (o que inclui as memórias). A associação destas influencia a formação de hábitos mentais e a compreensão de relações casuais. O filósofo acredita que a casualidade é uma conexão necessária entre eventos. Argumentando que não percebemos diretamente essa conexão, apenas associações regulares entre eventos. Hume duvida sobre a validade do raciocínio no qual as conclusões são tiradas com base na observação e em experiências específicas, destacando a incerteza na previsão de eventos futuros com base em observações passadas.

Esta abordagem parece-me bastante interessante, visto que no filme há um momento onde o Sammy Jankis (um personagem com o mesmo problema que o Leonard) é submetido a diversos testes sendo um deles a eletrificação de objetos, pois Leonard (que na altura era um investigador e estava a acompanhar o caso de Sammy, com o objetivo de perceber se este estava a mentir) acreditava que assim Sammy iria ser capaz de, por intuição saber que objetos é que poderia escolher sem se aleijar.

Tal como em todas as teorias existem objeções às mesmas, neste caso os críticos põem em dúvida a ideia de Hume da causalidade, questionam a validade do raciocínio indutivo, preocupações sobre a estabilidade da natureza humana, além de outras.

A meu ver, os sentidos são ilusórios, mas não deixam de ter um papel bastante importante na nossa vida, sendo impossível viver sem eles e viver num mundo onde tivéssemos de colocar tudo em causa. Diria então que concordo em parte com ambos os filósofos. Em relação ao filme, a fala de Leonard faz todo o sentido, embora as memórias possam ser manipuladas por nós próprios, voluntariamente ou involuntariamente, não deixam de ter um papel crucial na nossa vida.

A história deste filme é incrível, sendo contada de uma forma bastante original. De trás para a frente, ou seja, a primeira cena do filme corresponde ao “fim” da história. Fazendo com que o espectador se sinta com a condição do personagem principal, visto que tal como Burt (o rececionista do hotel onde Leonard está hospedado) diz a Leonard, quando este lhe conta sobre a sua doença: “That must sucks. It’s all backwards. Like, maybe you got no idea about what you want to do next but you don’t remenber what you just did.” (Isso deve ser mesmo mau. Está tudo ao contrário. Tipo, até podes ter uma ideia do que é que vais fazer a seguir, mas não te lembras do que acabaste de fazer.).

Numa das últimas cenas do filme é destacada a fragilidade da identidade pessoal de Leonard, pois Teddy, um personagem que se mostra amigo do protagonista, mas que é morto, como o culpado do homicídio da sua mulher no início do filme; mostra-lhe que vive num ciclo repetitivo de busca e vingança. O filme oferece uma diferente prestativa em relação à ligação das experiências e das memórias, e à perceção de quem somos. Tal como é mostrado no diálogo abaixo:

Teddy: You don’t know who you are. (Tu não sabes quem és.)

Leonard: I’m Leonard Shelby from San Francisco. (Eu sou o Leonard Shelby de São Francisco)

Teddy: That’s who you were. That’s not… what you’ve become. (Esse é quem tu eras. Esse não é… em quem te tornaste) 

Leonard deixou de ser quem era? Como é que alguém deixa de ser quem é? Como é que sabemos quem somos? O que é somos? Estas perguntas são discutidas na filosofia pelo tema da identidade pessoal. 

Este problema refere-se à questão de como podemos entender e explicar o que faz alguém ser a mesma pessoa ao longo do tempo, ou seja, confirmar uma continuidade na identidade de uma pessoa, mesmo que sofra mudanças físicas, psicológicas e temporais ao longo da sua vida. Sendo por isso bastante complexo, visto que envolve imensas questões fundamentais em relação à natureza da existência individual ao longo do tempo. Há várias abordagens com o objetivo de lidar com o problema apresentado. 

David Hume questiona a existência de um “eu” substancial e permanente. Argumentando que somos um conjunto de pensamentos e experiências que estão em constante mudança. A ideia de um “eu” não é algo real, sólido e permanente, é uma maneira de entendermos as nossas vidas. 

Os críticos acreditam que a teoria de Hume levanta preocupações em relação à fragilidade da memória, visto que esta pode ser falível e distorcida. Argumentam que o filósofo não explica de forma clara como é que as impressões e as ideias se unem para formar uma experiência coerente ao longo do tempo. Defendem também que existe uma negligência em aspetos emocionais e morais da identidade pessoal, como sentimentos, responsabilidade moral, que vão além de uma sucessão de impressões. Criticam a forma como Hume simplifica a complexidade da identidade pessoal, subestimando a importância da consciência, das relações interpessoais e da continuidade psicológica. E por fim, há críticos que questionam como esta teoria lida com situações em que a continuidade da memória é interrompida e que moldam a identidade, mas que não são lembrados. Esta objeção vai ao encontro do filme, sendo o personagem principal o melhor exemplo para a tornar válida.

John Locke defendia que a identidade pessoal não está ligada à substância física, mas sim à capacidade de recordar experiências passadas. Se alguém se consegue lembrar de experiências anteriores é porque é a mesma pessoa que as viveu independentemente de mudanças físicas que possam ter ocorrido ao seu corpo. Pegando no filme, John diria que Leonard é a mesma pessoa que era antes do assalto, visto que esse se lembra desses acontecimentos, mas mal se esquece de uma memória passada deixa de ser quem era há uns segundos atrás.

A esta teoria temos a mesma objeção feita a Hume em relação à fragilidade da memória. Outro desafio desta teoria é: quando uma pessoa perde a memória continua a ser considerada a mesma pessoa, sugerindo que a continuidade da identidade pessoal pode existir sem a continuidade de memória. Locke tem dificuldades em explicar os casos em que há mudanças radicais na personalidade sem que haja perda de memória, o que questiona a validade da memória com carácter exclusivo. Caso, se eventualmente, a memória de uma pessoa seja transferida para outra pessoa, a teoria apresentada tem dificuldades em explicar como é que a identidade pessoal é preservada. 

Derek Parfit formulou a teoria do “feixe de experiências”, constata que a identidade pessoal não requer a continuidade substancial ou uma “alma”, sendo melhor compreendida como uma cadeia de relações psicológicas e casuais ao longo do tempo. Sugerindo que a persistência da identidade está relacionada à sobreposição de características mentais e experiências, e a ideia de um “eu” inalterado é uma ilusão. Acreditando assim que a pessoa é um como um feixe de experiências interconectadas, e a identidade pessoal é mantida através da continuidade dessas relações, mesmo que não haja uma substância central permanente. 

Esta teoria é criticada devido à ideia do “feixe de experiências” ser frágil, pois a identidade pessoal parece depender da continuidade de experiências, deixando lacunas na explicação. Há quem defenda que esta teoria não explique adequadamente a unidade pessoa, pois as experiências podem não estar conectadas ao ponto de criar uma identidade unificada.

Para questionar as duas teorias referidas acima temos o paradoxo do Navio de Teseu, que diz o seguinte: as tábuas do navio de Teseu vão sendo substituídas por novas, ao longo do tempo o navio acaba por ficar com todas as tábuas renovadas e as tábuas deitadas fora foram usadas para construir outro navio. Qual é o verdadeiro navio de Teseu? Teseu defende que é o seu, visto que o seu barco foi remodelado. Se todas as tábuas foram substituídas ainda é o mesmo navio? Se a mudança contínua das partes físicas não altera a essência do navio, então o que define a identidade do navio?

Thomas Metzinger, aborda a identidade pessoal adotando uma perspetiva neurocientífica e filosófica, destacando a natureza da autoconsciência. Argumentando que a experiência do “eu” é uma construção do cérebro e não uma entidade substancial. O filósofo explora uma perceção subjetiva de ser uma pessoa que surge a partir de processos neurais e como esta ilusão de identidade é fundamental para a forma como experienciamos o mundo. A identidade pessoal é um fenómeno dinâmico e processual, resultante da atividade neural, e não uma entidade imutável ou permanente.

Os críticos refutam esta teoria argumentando que tem uma abordagem puramente neurocientífica da identidade pessoal, o que levanta preocupações sobre como é que essa visão pode influenciar as questões éticas relacionadas com a responsabilidade moral. Algumas objeções realçam a dificuldade de explicar na totalidade as experiências subjetivas e qualitativas da identidade pessoal apenas com base em processos neurobiológicos, questionando se essa abordagem é de facto suficiente. Esta teoria no ponto de vista de alguns críticos não dá a atenção necessária à continuidade psicológica ao longo do tempo, visto que se foca demais em aspetos neurobiológicos do que nas características mentais e psicológicas que contribuem para a idade pessoal.

Já Daniel Dennett, defende que a ideia de uma “entidade central” (“eu” permanente) é uma ilusão. Pois, sendo a mente composta por uma série de processos mentais e a identidade pessoal resultante das interações desses processos, esta é como uma narrativa contínua que emerge na atividade cerebral, e não como uma entidade substancial. O filósofo reforça a importância de entender que a mente é um sistema dinâmico em constante mudança, colocando em dúvida as conceções tradicionais de uma identidade pessoal fixa e permanente. Dennett enfatiza não só a importância dos processos cerebrais, mas também a importância das histórias que contamos sobre nós mesmos na construção da identidade pessoal.

Este argumento é criticado, pois acredita-se que esta teoria pode ser redutora, dado ao facto de minimizar aspetos complexos e subjetivos da experiência humana em prol de uma visão automática da mente. O ponto de vista de Dennett é questionado, pelos críticos, em relação à sua capacidade de explicar completamente a natureza da autoconsciência, incluindo a riqueza das experiências subjetivas e da sensação de ser consciente. Também sugerem que esta tese não dá peso suficiente a aspetos emocionais e morais da identidade pessoal, especialmente aqueles que vão além de funções cognitivas. Uma das objeções defende que este argumento não aborda adequadamente a complexidade da subjetividade e das experiências interiores, fazendo com que alguns elementos essenciais da identidade pessoal fiquem de lado.

Existem outras teorias em relação a este assunto que não são muito relevantes para este tema. 

Em Memento, o protagonista mantém uma forma de identidade pessoal construindo e mantendo uma narrativa corrente, mesmo fragmentada. A sua dependência de notas, fotos e tatuagens para lhe relembrar de eventos passados mostra a sua tentativa constante de criar uma história que dê sentido à sua vida.

Algumas teorias acreditam que a identidade pessoal está diretamente ligada à continuidade física do corpo ao longo do tempo, mas esta ideia pode ser colocada em causa por mudanças do nosso corpo, como doenças, ferimentos, transplantes de órgãos. Se recebermos um órgão de outra pessoa continuaremos a ser a mesma pessoa? 

Outras teses defendem a continuidade psicológica, argumentando que a identidade pessoal está essencialmente relacionada com características mentais, como na memória, a personalidade e a consciência. Este filme pode ser um exemplo de objeção a esta teoria. O Leonard deixa de ser quem é por não poder criar novas memórias? 

A teoria filosófica que melhor se enquadra com a história do filme é a de Derek Partif, visto que este defende que a identidade pessoal se concentra especialmente em relações psicológicas e na continuidade de características, em vez de na continuidade de um “eu” substancial ao longo do tempo. Leonard poderia ser visto como um conjunto de estados mentais relacionados entre si, cada um conectado com o próximo, por meio de memórias e experiências.

De todos os temas abordados neste ensaio, na minha opinião, este é o mais complexo, sendo o que tenho maior dificuldade em obter uma resposta. Este filme não é só uma história, como é também o exemplo de pessoas que não têm capacidade de criar novas memórias ou até pessoas com Alzheimer. Como acredito que as pessoas não deixam de ser elas próprias por ter estas doenças, a meu ver, a teoria que me parece mais acertada é de Derek Parfit, visto que este defende que a identidade pessoal está relacionado com a ligação entre características mentais e as experiências e porque defende que o “eu” pode sofrer alterações.

 “We all lie to ourselves to be happy.” (Todos nós mentimos a nós próprios para sermos felizes.)

Esta frase proferida por Teddy, quando, na última cena, revela a Leonard que ele já tinha assassinado o indivíduo que violou a sua mulher e que na realidade tinha sido Leonard a matá-la. Sendo que esta sobreviveu ao assalto, achando que Leonard mentia em relação à sua condição médica de perda de memória, testou-o. Como ela sofria de diabetes pediu ao seu marido que lhe injetasse insulina, depois de uns minutos repetiu o seu pedido e assim sucessivamente. Como Leonard não se lembrava de já lhe ter dado a injeção continuou a fazê-lo, por isso a sua mulher acabou por morrer por excesso de insulina. Leonard achava que esta era a história de Sammy Jakins, um caso que investigou, que Teddy também revelou que na verdade Sammy estava a mentir em relação à perda de memória. 

A frase apresentada acima refere-se não só ao caso de Sammy Jaknis, como à obsessão do protagonista em encontrar um culpado e vingar a “morte” da mulher, mesmo tendo morto o violador. Visto que Leonard mente a si próprio inconscientemente, ou conscientemente, para ser feliz, para ter um propósito na sua vida.

O que me faz questionar se é moralmente correto culpar o Leonard por ter mentido a si próprio para seu proveito? Esta pergunta pode ser analisada com o tema filosófico da Ética, esta procura definir o que é o bom e o mau.

A Ética começa por estudar se há verdades universais na Ética e se esta é igual para cada pessoa, o que não me parece muito relevante para o exemplo apresentado. Na Ética explorou-se também o como é que devemos agir, o que torna e o que faz as nossas ações certas ou erradas. Dois filósofos que tiveram bastante influência neste tema foram John Stuart Mill, que defende o Utilitarismo, e Immanuel Kant, que defende a Ética Deontológica. 

Mill, defende o Utilitarismo, acredita que devemos agir com o objetivo de promover o máximo bem-estar ao maior número de pessoas possível, sendo imparcial em relação a essas pessoas, alega que as consequências que as ações têm para o maior número de pessoas é que as torna certas ou erradas. Estando uma ação moralmente certa quando promove o bem-estar e errada quando não o faz.

As principais objeções a esta teoria defendem que põem em causa a ideia de justiça, pois considera que uma ação injusta, desde que seja útil, não é errada; entra em conflito com os direitos das pessoas, visto que legitima ações em que os direitos humanos são postos em causa; exige demasiado das pessoas, porque faz com que desistimos dos nossos projetos pessoais em prol de fazer o bem para o maior número de pessoas; justifica ações que contrariam as nossas intuições morais básicas e legitima a instrumentalização de pessoas, sendo usadas com o objetivo de fazer o bem para um maior número de pessoas.

Kant defende a Ética deontológica, argumenta que devemos agir de acordo com o Dever, sem pensar nas consequências das nossas ações, nunca infringindo os direitos humanos, o que faz as nossas ações serem erradas é infringir intencionalmente os direitos humanos.

Críticos refutam esta tese, argumentando que defende atos cujas consequências são horríveis, em nome do Dever; não se aplica em conflitos entre Deveres e dá a entender que apenas somos moralmente responsáveis pelo que fazemos intencionalmente.

Num ponto de vista de um Utilitarista, Leonard é moralmente incorreto, dado ao facto de ter provocado a morte de várias pessoas. De acordo com a Ética deontológica, Leonard é moralmente incorreto, caso tenha mentido a si próprio conscientemente, caso tenha sido inconscientemente, então não fez nada de errado. Já se formos analisar o comportamento de Leonard em relação ao violador da sua mulher, ambos os filósofos o vão considerar errado.

Na minha opinião, ambas as teses não são completamente corretas, mas sou a favor da Ética deontológica. Visto que, não concordo com Mill quando diz que o critério principal para avaliar uma ação é o número de pessoas a quem favorece. Acho que devemos agir de acordo com o Dever, mas existem exceções e claro sou a favor de que nunca se infrinja os deveres universais.

Concluindo, este filme não é só uma história bastante interessante, mas também nos deixa a pensar sobre ele. Questionando-nos sobre diversos temas da filosofia, como a dualidade mente-corpo, os sentidos, a ética e especialmente sobre a identidade pessoal. Estas têm sido abordadas ao longo do tempo por vários filósofos com diferentes ideias. A ambiguidade e a narrativa não linear fazem com que o filme seja original e permite que o espectador tenha diferentes interpretações. A forma como estas interpretações formulam diversas questões filosóficas nos mais variados temas da filosofia é espetacular. As reflexões sobre as mesmas vão além do filme, provocando uma consideração e conhecimento ainda mais amplo sobre os temas abordados. Para finalizar, deixo-o a pensar sobre uma das frases mais icônicas deste filme, que na minha opinião, é das maiores reflexões e lições que podemos levar do mesmo, dita por Leonard na cena final:

 “I have to believe in a world outside my own mind. I have to believe that my actions still have meaning, even if I can’t remember them. I have to believe that when my eyes are closed, the world’s still there. Do I believe the world’s still there? Is it still out there?… Yeah. We all need mirrors to remind ourselves who we are. I’m no different.” (Eu tenho de acreditar num mundo fora da minha própria mente. Tenho de acreditar que as minhas ações ainda têm um significado, mesmo se não me conseguir lembrar delas. Tenho de acreditar que quando os meus olhos estão fechados, o mundo continua aí. Acredito que o mundo continua aí? Continua aí?… Sim. Todos precisamos de espelhos para nos lembrarmos de quem somos. E eu não sou diferente.)

-Daniela Marreiros

Notas:

1– página 27, O ESPANTO | Filosofia 11ºano

Bibliografia:

ALMEIDA, Aires; MURCHO, Desidério, O ESPANTO | Filosofia 11ºano, Lisboa, Didáctica editora, 2022

LOEWER, Barry (coordenação), Filosofia em 30 segundos, Lisboa, Editorial Presença, 2023

Webgrafia:

https://www.shmoop.com/study-guides/memento/identity-quotes.html

https://pt.wikiversity.org/wiki/Filosofia_da_mente:_Monismo_materialista

https://amenteemaravilhosa.com.br/a-relacao-entre-mente-e-corpo-segundo-a-filosofia

https://resumos.soescola.com/glossario/o-que-e-neutral-monismo-na-filosofia/ chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://compendioemlinha.letras.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2015/01/galvo_identidade_pessoal.pdf

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