Como em qualquer forma de arte, é necessário um corte, um sangue que jorra para permitir a cicatrização, uma revolução de glóbulos brancos. O cinema brasileiro é vasto e profundo, muitas vezes esquecido e afogado pela hegemonia hollywoodiana. É como um iceberg, visível apenas na sua ínfima ponta: o breve, o necessário para entreter o povo e suavizar o peso da existência do proletariado.

Para falar do cinema brasileiro, é necessário relembrar os anos 60, um período apagado e esquecido, que só existe na escuridão das celas, nas manchas de sangue em colchões sujos e podres e nos gritos abafados. Trata-se da ditadura militar brasileira,  regime autoritário que durou de 1964 a 1985, iniciado com um golpe de Estado. Durante esse período, o Brasil foi governado por presidentes militares e a repressão política intensificou-se: censura à liberdade de expressão, perseguição a opositores, tortura e mortes marcaram esse período.

A ditadura alterou profundamente a música, a literatura, o cinema e a arte em geral. Foi nesse contexto que surgiu o movimento tropicalista, uma resposta involuntária, movimento de reflexo, à repressão. Era necessário uma abertura, um suspiro. Na música, artistas como Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e Gilberto Gil romperam os grilhões que sufocavam o povo, afogado cada vez mais no medo e no desespero. A literatura rangia os dentes, ficava à espreita na janela, vendo a marcha dos soldados. O bater das botas no solo negro causava dor e angústia. Atrás do cortinado envelhecido pelo tempo, ficava Clarice Lispector, Oswald de Andrade e Chico Buarque.

O cinema brasileiro teve um papel de extrema importância nos anos 60 e 70, utilizando muita influência da filosofia cinematográfica da  Nouvelle Vague, que rompia com as convenções do cinema clássico. Iniciado em França por nomes como François Truffaut e Jean-Luc Godard, esse movimento rapidamente se espalhou pelo mundo. Glauber Rocha, Sganzerla, Carlos Diegues e Nelson Pereira dos Santos retiraram todo o tutano do osso francês, fundindo-o com a realidade do quotidiano brasileiro.

A crítica à política intensificou-se, eclodindo a rebeldia popular. 

Utilizando uma analogia, podemos interligar a terceira lei de Newton, que diz que para cada ação há uma reação de igual intensidade, mas em sentido oposto: o aumento da rebeldia popular provocou o endurecimento da repressão militar. Para conter a revolta, o Estado recorreu a instrumentos brutais, como as Tropas de Choque, o Esquadrão da Morte e o DOPS. Com a escalada da violência, muitos foram exilados, torturados ou desapareceram sem deixar rastros, apagados da sociedade, restando apenas saudades.

O cinema vivia escondido nas esquinas e nos becos escuros. Grande parte dos filmes criados nessa época eram proibidos de serem exibidos, sendo guardados em gavetas empoeiradas. Querer saber e entender era ato de rebeldia. A arte era a arma mais perigosa naquela época. Muitos filmes tornaram-se símbolos de luta contra o regime. Os mais influentes do novo cinema brasileiro foram Vidas Secas (1963), Terra em Transe (1967), Cabra Marcado para Morrer (1984), Eles Não Usam Black-Tie (1981) e Macunaíma (1969).

Incapaz de deixar de falar sobre o novo filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, uma longa-metragem que retrata a visão de quem fica. Um retrato aflitivo da família Paiva que nos transporta à década de 1970, quando Rubens Paiva é levado por militares e desaparece. Sentimos a dor de Eunice, mulher de Rubens Paiva, e a falta que este gera, deixando um buraco encoberto no coração da família. Com o elenco de Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello e outros, este filme é indicado ao Óscar de 2025 nos parâmetros de Melhor Atriz, Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro.

Podemos concluir que o cinema brasileiro se transformou num poeta clandestino, semeando esperança nas largas avenidas, nos barracões das favelas e nos cafés, revestido de espelhos e ouro em Leblon. Fez florescer sorrisos nos rostos marcados pela aspereza da vida.

Cinema é lembrança, momentos eternos…

“A arte existe porque a vida não basta. No Brasil, a arte é um ato de sobrevivência.”

— Ferreira Gullar

João Araújo

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