No âmbito das atividades da Biblioteca Escolar e do Plano Nacional de Artes, realizou-se o Concurso literário MTG – Prémio Literário Fátima de Oliveira, tendo conquistado o 1º prémio a aluna Cátia Gorbatii, do 11º ano, turma I.

São as cores da literatura. Sempre foram e sempre serão. Desde o azul dos mares descobertos por “Os Lusíadas:”, na escrita de Camões, até ao vermelho do sangue de Tróia, nos poemas de Homero, ou os tons melancólicos de preto e cinzento nas descrições do submundo de Dante. Mas e o verde? Dizem que o verde significa esperança, liberdade e
saúde e que está muito presente na natureza. Aprendi no primeiro ano que o verde é a mistura do azul com amarelo, e mais tarde, no décimo ano, aprendi que a clorofila é o pigmento responsável por dar a cor verde às folhas.
Mas eu não o vejo. Sinto Camões, Homero e Dante, mas não totalmente. Não vejo os verdes presentes nos relvados da Ilha dos Amores ou de Ítaca. Não vejo as verdes serpentes que acompanharam Dante até ao Inferno. Não sinto totalmente.
Quando olho para algo considerado verde, apenas não vejo cor. Muitos pensam que eu vejo algo no lugar do verde, mas na verdade apenas vejo ausência de cor. Não é nem cinzento, nem preto, nem castanho. Não é algo digno de uma descrição. Simplesmente um vazio na coloração.
Já me questionei inúmeras vezes do porquê de tal peculiaridade minha, mas não encontro explicação lógica. Médicos dizem que parece estar tudo certo com a minha visão e cérebro. Parei de procurar ajuda quando começaram a especular que teria algum tipo de doença parecida a esquizofrenia.
Vivo sozinha, numa pequena vila situada num país à vossa escolha. Cá vivo a solo. Não me resta muito do passado, então escolho viver um presente que me preserve o futuro. Tenho animais. Leio. Escolho apreciar a quinta arte diariamente. Entro em universos diferentes a cada livro novo que abro. Já andei nos chãos do Ramalhete e admirei os azulejos das suas paredes. Gozo de palavras coerentes, as quais constroem mundos, sentimentos e tragédias.
Não muito longe da minha residência, foi inaugurada uma universidade em 1970 e permanece como nova até hoje (que é um dia à vossa escolha). Lá, apenas existem cursos de letras, não incluindo nenhum tipo de ciência. É um lugar dedicado para discutir palavras, línguas, livros etc….. Infelizmente não a frequento formalmente, mas arranjo sempre maneira de lá entrar, e sento-me nas cadeiras das salas universitárias para ouvir o que os mais cultos têm a dizer. São raros os dias em que não me encontro lá.

Os professores não dão muito pela minha presença, menos a professora Olívia. Nem me lembro como a conheci, mas sei que já aprendi mais com a professora Olívia do que alguma vez havia aprendido com outro alguém. As suas palavras soam como a escrita de Saramago. O seu sorriso ilumina uma atmosfera. Ela tem por volta de uns sessenta e muitos anos, já é uma mulher de idade, no entanto, a sua aura e energia revelam uma jovem animada pela arte e a vida. Costuma falar sobre os seus netos nascidos há pouco tempo do hoje, sobre os seus gostos gastronómicos e sobre as suas coisas favoritas. Coisas favoritas que incluem o filme “O Iluminado”, o qual ela afirma que já ter visto umas 23 vezes, a banda “The Beatles”, a qual ela afirma ter ouvido “Hey Jude” todos os dias sem falta por 3 anos, e a cor verde, a qual ela afirma ser a coisa mais bela que os olhos humanos alguma vez poderiam sentir. Ela tem um absurdo amor pela cor verde. Ama verde como se fosse alguém.
Na verdade, a professora Olívia ama tudo, já eu, sinto desgosto pelas coisas que me rodeiam. Às vezes tento ser mais como ela, e tento desfrutar de um bom filme ou de um prato tradicional italiano. Infelizmente, na maioria dos casos, não obtenho o sucesso que encontrava, pois filmes são previsíveis e não me deixam gozar da imaginação, e as comidas têm sempre algum ponto negativo, sempre havendo algum tempero ligeiramente a mais do que deveria estar. A única vez em que comi algo que me soube perfeitamente como deveria saber, foi quando a professora Olivia me trouxe parte dos pastéis que ela tinha feito em casa para os seus netos. Apreciei-os bastante, assim como apreciei também o seu gesto simpático de se ter lembrado de mim. Ela diz que o segredo é ver a cor dos alimentos de forma minuciosa, e assim chegaríamos ao ponto perfeito, mas nunca percebi muito bem o que ela quis dizer com isso.
Um dia, dirigia-me à sala da professora Olívia, para assistir a mais uma das suas fascinantes aulas, quando me deparei com uma porta trancada, a qual guardava uma sala vazia. Estranhei, pois a única vez que a professora Olívia havia faltado foi por causa de umas férias, mas mesmo assim, ela já havia avisado com antecedência que faltaria. Portanto,
ousei perguntar a um funcionário público do local onde estaria a professora e abordei um senhor alto e magro. Pela primeira vez conversei com alguém de lá que não era a professora Olívia. Este respondeu que a professora ficaria uns tempos sem dar aulas, sem especificar os motivos. A preocupação foi invadindo o meu corpo, impedindo-me de conseguir perguntar mais alguma coisa ao senhor simpático, e então apenas agradeci e voltei para o meu lar.
Após esse evento, passei os tempos seguintes a ir todos os dias, às mesmas horas de sempre, ver se a professora Olívia havia voltado. Deveriam ter-se passado por volta de duas semanas, quando numa quinta-feira, a professora encontrava-se na sua mesma posição de sempre. Mas desta vez vestia preto, algo que não acontecia com frequência, e
levava lenços no bolso e olheiras na face. Estava magra, muito magra para uma diferença de duas semanas, e quando me viu a entrar, dispensou todos os alunos que lá estavam, exceto eu. Quando a sala se encontrou totalmente vazia, a professora aproximou-se de mim e quase caiu, começando a chorar as mais ácidas lágrimas. Faltava-lhe o ar por conta do seu desespero, abri uma janela e abracei-a. Não percebia nada. Receava o que ela me tinha a dizer como se a minha vida dependesse de tal. Não queria perdê-la de jeito algum. Após uns intensos quinze minutos de água sofrida, a professora Olívia começa a contar entre os seus soluços, que havia perdido o mais novo dos seus netos, devido a um trágico acidente. Não me disse que acidente, se foi de carro, ou de bicicleta, ou apenas uma queda letal enquanto brincava. Eu também não perguntei. Silêncio. “A morte chega cedo/ Pois breve é toda a vida/ O instante é o arremedo/ De uma coisa perdida.” foi a única coisa que eu disse após uns bons minutos calada, “Pessoa.” foi a sua resposta.
As aulas já não eram as mesmas, a professora Olívia chegava atrasada e saía mais cedo. Parou de usar roupas coloridas e sorrisos charmosos, substituindo por vestimentas com tons negros e uma expressão cansada. Falava de Camões como um escritor, e não como um artista. Ela continuava a ser simpática, mas limitava-se a proferir nem um quarto
do que antes proferia. As suas aulas costumavam ser os momentos mais preciosos das minhas semanas, e agora, custa-me cada vez mais lá estar. Por isto, parei de ver qualquer qualidade nos meus dias. Tudo parecia defeituoso, já não tinha mais a sensação agradável de aguardar o dia da aula da professora Olívia. Parei de ir à maioria das outras aulas. Não lia muito. Mal consigo dizer o que fazia nesses dias. Não tinha nada para me guiar, então perdi-me.
Assim passaram-se meses, melancólicos e lentos, quando num dia decidi tentar fazer os deliciosos pastéis da professora Olívia. Vasculhei gavetas e encontrei a antiga receita que ela me tinha dado. Comprei todos os sabores incluídos na lista e comecei a cozinhar.

As instruções estavam pouco claras, o que me deixou com baixas expetativas em relação ao resultado. Limitava-se a ter apenas descrições acerca das cores que eu deveria ver ao misturar e cozer os alimentos. Tentei ser o mais precisa possível. Levei a tarde inteira com estes pastéis, mas foram os segundos mais bem gastos, pois quando finalmente os provei, senti exatamente o mesmo sabor dos pastéis que a professora Olívia me trouxe daquela vez. As cores foram voltando à medida que cozinhava a receita, e voltaram completamente ao prová-la. Soube-me a letras e palavras. Soube-me à vida. Soube-me aos Beatles, ao Iluminado, ao verde! Senti-me novamente feliz, então pus-me a ler contos e a comer pastéis.
Ao fim dessa mesma tarde, fui novamente a mais uma das aulas da professora Olívia, e levei-lhe metade dos pastéis que fiz mais cedo. Esperei a aula terminar e ofereci-lhe a comida. Soltou o primeiro sorriso que via em meses, e elogiou-me os pastéis, reforçando o quão agradecida ela tinha ficado pelo meu gesto. Então, começou-me a falar de quando ela era mais nova e deitou farinha para cima do seu gato Bonifácio, e de outras mais histórias relacionadas com a cozinha.
Após a regular conversa, depois da despedida, vejo verde ao olhar para as árvores da rua. Pela primeira vez senti a natureza e vi a liberdade que tanto falam nos textos. É lindo! A professora Olívia tanto fala do verde por algum motivo. Aprendi a ver, encontrei a cor, libertei-me da cegueira e da perdição.
Foi a partir desse dia que cozinhar, conhecer nova gente e da passeios era divertido. Decidi que queria terminar o secundário, e candidatei-me logo para a universidade da professora Olívia, onde me formei. A nossa amizade permaneceu forte até ao dia da sua morte. Foi trágico, sim, mas sinto a sua presença diariamente. Uns anos mais tarde concederam-me o seu lugar de professora na universidade, e agora, trabalho todos os dias para poder chegar perto do que a professora Olívia alguma vez chegou.
Era ela as cores da literatura, sempre foi e para sempre será.

-Cátia Gorbatii

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