Tudo o que é em excesso faz mal!

Sonhar acordado é uma atividade mental comum e útil. Mantém-nos motivados para alcançarmos os objetivos e estimula a nossa criatividade dando, muitas vezes, boas soluções para os nossos problemas. Será, no entanto, sempre assim? Alguns têm mais propensão a imaginar e isso pode significar uma inteligência acima da média ou diversos distúrbios. Com que frequência vais para o mundo da lua? Sentes que esse comportamento é um vício e a banalidade dele torna-o mais frustrante? Este artigo foi escrito para ti!

Foi introduzido um novo conceito em psicologia, «Devaneios Excessivos» ou, em inglês, «Maladaptive Daydreaming». No ano de 2002, o israelense Eliezer Somer, professor de Psicologia Clínica na Universidade de Haifa e ex-presidente da Sociedade Europeia do Trauma e Dissociação, nomeou a angústia e a pouca produtividade provocadas pela excessiva absorção em divagações. Pessoas de todas as nacionalidades têm vindo a aderir à comunidade online onde desabafam sobre a sua infelicidade, incompreensão, falta de autocontrole e questionam se já existe um tratamento medicamentoso para parar o fluxo de imagens mentais. Os especialistas de saúde mental lidam com este problema como se fosse um sintoma de outros e não é ainda aceito como uma comorbilidade, ou seja, como um distúrbio psicológico isolado. Frente a essa pouca credibilidade, quem se identifica sente vergonha de comunicar abertamente com medo de receber diagnósticos errôneos ou ser considerado exagerado.

Nos poucos estudos realizados, alguns relatos referem experiências emocionais marcantes (abusos sexuais, físicos e psicológicos) na infância, porém muitos outros indicaram a extrema solidão. Nesse refúgio mental, surgem narrativas detalhadas sobre temas diversos e com intuitos específicos, tais como: equilíbrio da autoestima; idealização do “eu”; gestão de conflitos; desejos futuristas; intimidade e companheirismo; violência, cativeiro e resgate.

O habitual é serem ao longo de semanas, meses ou anos os mesmos cenários e personagens com apenas roteiros diferentes. A construção desse devaneio leva horas e causa consequências nos âmbitos acadêmico, laboral, social e/ou vocacional. Os sinais mais evidentes são: apresentar como principal gatilho a música; gesticular fazendo expressões faciais e movimentos repetitivos; brincar com objetos ou andar de um lado para o outro; entrar em hiperfoco e perder a noção do tempo; mostrar emoções muito intensas; sentir irritação se interrompido e ansioso se impedido e ter dificuldade em falar dos devaneios.

Uma vez que os Devaneios Excessivos não constam no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-V), em 2017, foi fundado o Consórcio Internacional de Pesquisa dos Sonhos Excessivos Desadaptados (ICMDR), uma instituição académica informal com membros dos «quatro cantos do mundo» (EUA, Austrália, Itália, Hungria, Reino Unido, Polônia, Suíça, Brasil, Israel e Grécia). Portugal ainda não entrou em cena.

Para clarificar melhor o que foi acima dito, pedi a duas pessoas de nacionalidade brasileira pertencentes à comunidade online para ilustrarem o artigo com os seus testemunhos pessoais.

«Ter os devaneios é como ser um viciado, onde a droga está sempre à mão para o uso e com estoque ilimitado. É difícil lidar com essa vontade que, por vezes, acontece quase sem percebermos. À primeira vista ele é muito parecido com o TDAH, uma vez que existe uma falta de foco, mas o processo interior é diferente, não estamos dispersos por uma chuva de pensamentos. A verdade é que estamos com a cabeça longe, pois quanto mais focados em nosso interior, mais forte e vivida se torna a nossa imaginação. Podemos, inclusive, deixar de ouvir e ver o que se passa ao redor, para além de quase sempre perdemos a noção do tempo. Vale lembrar que devanear é comum, ter a vida atrapalhada pelo excesso dos devaneios por muitos anos é que classifica o transtorno», primeiro testemunho anónimo.

«Vou falar brevemente sobre os meus que começaram por volta dos 5 anos. Criou histórias fantasiosas cujas personagens têm a aparência de famosos ou de elementos de animes, mas os nomes e as personalidades sou eu que invento. Não devaneio com pessoas do meu convívio. Eu gesticulo, rio, choro, é tudo muito intenso! Tenho diagnóstico de Bipolaridade para além dos Devaneios Excessivos», segundo testemunho anónimo.

Como extra, incluo também o meu relato.

Este problema surgiu quando necessitei de uma válvula de escape. Irrito-me quando interrompem o ciclo dos meus devaneios e fico muito ansiosa se não poder devanear. Não costumo embater nos móveis nem falar alto e nunca escutei vozes, porém contínuo com medo de ser apanhada. Vejo um restaurante ou uma cave dentro das quatro paredes do meu quarto, sem abandonar por completo qualquer um dos mundos, quer o real quer o paralelo. Noto que ao teatralizar sou muito intensa, chorando e rindo consoante os enredos, só que nos momentos em que tenho os pés assentes na terra pareço fria emocionalmente.

Percebi que não era algo normal ao questionar os meus amigos e eles falarem que conseguem adormecer passados alguns minutos, pois eu levo horas a fio repetindo compulsivamente até que tudo esteja «perfeito» e a minha autoestima controlada. Assim que acordo, cansada de não ter dormido bem, automaticamente entro em divagações, levando imenso tempo para me arranjar e sair de casa e o próprio caminho até à escola é na maior das calmas, não importa se chegar apenas no último tempo. Estou mais da metade do dia dentro da minha bolha. Anseio companhia e recuso com a mesma proporção, uma ambivalência insuportável…

Mas, a dicotomia mais incompreensível e frustrante é que quero tanto os devaneios quanto estou cansadíssima deles.

Priscila Delgadinho

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