A PROBLEMÁTICA DA BUSCA PERMANENTE DO CONHECIMENTO DO EU

Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

.

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem,

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: «Fui eu?»

Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa

24-8-1930 

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Não sei quantas almas tenho.

É um dos poemas de Pessoa ortónimo que apresenta a problemática da busca permanente do conhecimento do eu.

Para uma possível leitura

Após a leitura do poema em estudo, podemos observar que o sujeito poético confessa a sua fragmentação (a cisão do eu) em múltiplos eus, como o próprio Pessoa refere em Páginas Íntimas e de Autointerpretação“Sou múltiplo. Sou como um quadro com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única realidade que não está em nenhuma e está em todas”.

    Esta sucessiva mudança (“Não sei quantas almas tenho. / Cada momento mudei”, vv.1-2) leva-o a ser estranho a si mesmo (“Continuamente me estranho. / Nunca me vi nem achei”, vv.3-4). É, como lhe chamou Robert Bréchon, ensaísta literário francês, especialista em Fernando Pessoa, um “Estranho Estrangeiro”.

    Estamos aqui perante uma viagem interior, em que continuamente o poeta enrola o novelo dos seus eus, das suas fragmentações, podendo até afirmar que ele se torna outro, e assiste à sua passagem (“Sou minha própria paisagem, / Assisto à minha passagem”, vv.13-14), criando metaforicamente o livro do seu ser, lendo as páginas da sua demanda, da sua espécie de peregrinação interior, mas sendo incapaz de poder prever o futuro, porque muda sempre (“Por isso, alheio, vou lendo, / como páginas, meu ser. / O que segue não prevendo”, vv.17-19), considerando o passado como um tempo a esquecer (“O que passou a esquecer”, v.20).

    Nesse livro, que é uma metáfora da sua vida, do seu ser, olha para as “páginas” da sua vida como quem lê um livro que outrem escreveu, chega até a considerar que as anotações que faz à margem do que lê não são suas, como se fosse “alheio” (v.17) a tudo isto (“Noto à margem do que li / O que julguei que senti. / Releio e digo: «Fui eu?», vv.21-23), tornando-se cético quanto aos seus próprios sentimentos.

Conclusão

Na sua busca permanente do conhecimento do eu e do mundo, o sujeito poético coloca o enfoque no absurdo da existência, vivendo num mundo muito próprio onde dominam a nostalgia, a angústia e o tédio existencial. A fuga a esta realidade estranha acaba por levá-lo a um egotismo exacerbado (havendo até quem lhe atribua um certo pendor narcisista, fruto dessa constante autoanálise), até à negação do eu, à recusa do sentimento, à dor de pensar, à infância imaginada, numa vontade de ser outros. Na poesia de Pessoa ortónimo, são frequentes estas vivências complexas, fazendo com que o poeta se assuma como um ser fragmentado, um ser que se desencontra de si mesmo, despersonalizando-se.

-Lídio Cardoso-AEMTG

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