O método do raciocínio a priori é completo?
Esta pergunta quererá escrutinar se, com o método a priori, é possível saber tudo o que for possível saber, quer seja possível saber tudo, nada, ou uma quantidade definida de conhecimento delineada, por exemplo, pelo critério da distinção das ideias de Descartes. Porém, neste ensaio, vou somente analisar um caso específico (argumento do conhecimento), não podendo ser generalizado. Ainda assim, uma conjuntura em que algo só pode ser sabido a posteriori é logicamente suficiente. Pressuponha-se que existe uma pessoa que nunca viu cor mas sabe todos os factos físicos sobre este conceito. Ao ser exposta ao azul, aprenderia algo de novo? Esta experiência mental (que vou denominar de “S”) está associada à filosofia da mente e a pergunta do ensaio à epistemologia. O objetivo desta experiência mental de Frank Jackson é refutar o Fisicalismo, tese de que tudo o que existe tem cariz físico. O argumento basilar defende o seguinte: Maria sabe todos os factos físicos e aprende quando vê cor. Logo, há factos não físicos e o Fisicalismo é falso. Aqui irei defender que a resposta de S é “sim”, havendo coisas que só a posteriori podemos saber, embora tenha sérias dúvidas no que concerne à validade da experiência mental. Fundamentalmente, a importância da pergunta do ensaio reside no facto de limitar a nossa esfera de conhecimento e poder implicar que algumas verdades sobre a natureza são para nós inalcançáveis porque, se existirem coisas que só podemos saber a posteriori,, então basta admitir que há coisas que nunca vivenciaremos para concluir que nunca aprenderemos aquilo que a essas está associado. Por sua vez, S esclarece-nos quanto à lacuna entre a natureza do mundo como é descrito e como é sentido.
Sendo um empirista, Hume provavelmente responderia, relativamente a S, que sim. Isto porque para ter a ideia de cor, aquela pessoa teria de tê-la visto (ter a impressão de cor). Não conseguimos formar a ideia de uma cor juntando várias ideias posto que esta é simples, ou seja, indivisível. Note-se que Hume chega mesmo a escrever sobre como imaginar uma cor (muitos filósofos consideram a sua filosofia inconsistente neste aspeto): se dispuséssemos de um leque de tons de azul e entre este faltasse uma tonalidade específica, imaginaríamos por contiguidade esta tonalidade, mesmo sem a ter previamente detetado através dos sentidos.
Por outro lado, um defensor do Fisicalismo, como Earl Conee contesta que não. Segundo este, Maria não ganha conhecimento proposicional, simplesmente fica familiarizada com o conceito de cor. Analogamente, se soubermos tudo sobre o Ronaldo, não iremos adquirir conhecimento por vê-lo em pessoa. O sujeito em questão só adquire outra perspetiva acerca de coisas que já sabia. A hipótese da habilidade é outra objeção ao pensamento de Jackson. A antedita propõe que Maria não ganha conhecimento, mas sim habilidades. “Não é saber algo. É saber como”- David Lewis. Entre estas está, por exemplo, a habilidade de reconhecer (Maria, ao ver azul, reconhece que já viu aquilo na sua imaginação). Então, qual a minha opinião no assunto?
Em primeiro lugar, só se aprende ampliando o que se sabe (acrescentando conhecimento). Julgo que com toda e qualquer, podemos aprender. Mesmo já sabendo perfeitamente o que é o, Maria aprendia, a título ilustrativo, que consegue imaginar uma cor que nunca viu. Todavia, o que se quer realmente saber é se o azul que ela tinha em mente é o azul que posteriormente viu (ou seja, se ganha ou não conhecimento “instantaneamente”. Seja como for, creio que Maria aprende. A meu ver, a questão retrocede ao seguinte: o reducionismo é capaz de construir o fenómeno emergente (cor como a percecionamos)? Saber tudo sobre cor equivale a ter em mente o “todo” que é a cor? Penso que, nesta situação, a emergência é um filtro ao panorama geral. “O todo é maior do que a simples soma das suas partes”- Aristóteles. Mas pode ser esta conclusão (emergência é uma barreira) uma consequência da minha ignorância quanto ao que o “tudo sobre a cor” realmente significa? Plenamente. Então digo mais: admitindo agora que Maria consegue ter a noção holística de cor, a imagem que cria por imaginação pode ser distinta daquela que vê. Porque “tudo sobre cor” contém mais que aquilo que sabemos e podemos saber. Inclui também o que nem sequer sabemos que não sabemos, e assim sucessivamente, ad infinitum. Logo, Maria vê o que a cor é ao invés do que parece ser, interiorizando a discrepância entre o subjetivo (visão humana) e o objetivo (realidade última do conceito de cor). Aliás, estou em crer que, mesmo tendo rigorosamente uma imagem igual ao nosso azul, Maria aprende. Porque somos condenados a ver melhor o que vemos que o que pensamos, a vivacidade da experiência de Maria seria outra, o que rejeita a hipótese da habilidade. Tal como a representação menos real é que o representado, e como a filosofia escrita menos verdadeira e clara é do que o pensamento que a inspirou, a imaginação menos intensa é que a efetiva visão da cor.
No entanto, parece-me que a própria experiência mental não é a mais adequada. Para já suponho que a única maneira de Maria saber tudo (e corretamente) é que saiba tudo de uma vez visto que qualquer meio que utilizasse para aprender seria não mais que uma aproximação da realidade objetiva a que tem de ter acesso para o argumento ter impacto. Depois, não poderia pensar sobre o que aprendeu porque iria adquirir um ponto de vista. Porém, para ter noção do “todo” objetivo não podia vê-lo, per definitionem, de nenhuma perspetiva. “Nada dentro do Universo pode saber tudo sobre o Universo”- Markus Gabriel. Detalhes aparte, o grande problema é que esta situação hipotética é incompreensível porquanto é inconcebível saber tudo sobre um dado conceito. Não podemos imaginar o que é saber tudo, mesmo relativamente a um conceito finito (o de cor) porque o domínio de tudo contém também o subconjunto do que não podemos imaginar.
Dizer que Maria aprendeu é uma mera intuição. Agora, até que ponto podemos confiar numa intuição quando não temos noção da condição subjacente? “Intuições sem conceitos são cegas”- Immanuel Kant. Se a essência da experiência mental nos escapa, poderemos obter respostas corretas? Uma resposta exata implicaria que conseguíssemos imaginar corretamente o que é ser Maria. Daqui segue, curiosamente, que se a resposta correta da experiência mental for sim (não conseguimos imaginar o que é ver cor e por isso, provavelmente, não conseguirmos imaginar/perceber o que é ser Maria) então não conseguimos responder dignamente à experiência mental. Vejo o argumento do conhecimento como um apelo à ignorância. Havendo coisas que pela sua natureza e pela nossa não podem ser derradeiramente compreendidas, tais como o “saber tudo”, considero que a intuição e subsequente crença podem muito bem não ser verdadeiras nem justificadas, pelo que este argumento, intuitivo e simples, perde a sua força. Concluo que não há uma conclusão credível para S.
Ao fim e ao cabo, creio que Maria aprenderia algo embora pense que a utilização do “tudo” tire valor a qualquer resposta a S. Gera-se aqui um dilema em como refutar o Fisicalismo. Neste tipo de argumentos, presente também em “Como é ser um morcego” de Thomas Nagel, ou se utiliza o “tudo” (para o argumento funcionar) ou se utilizam quantidades conhecidas de informação, podendo neste caso o Fisicalista alegar que a única razão pela qual não conseguimos imaginar determinada coisa é não termos informação/conhecimento suficiente. Noutros termos, ou o argumento é inconclusivo ou não é definitivo. Quanto à pergunta do ensaio: em termos práticos, os dados empíricos são um elemento exclusivo de aprendizagem. Teoricamente falando, é possível que tudo o que se possa aprender a posteriori possa também ser aprendido a priori mas, pelo menos no caso em que analisei, entramos em areias movediças, já que os próprios alicerces de S não são compreendidos pelo nosso cérebro finito. Embora exista esta possibilidade, acho que, no mínimo, os dados empíricos esclarecem-nos relativamente ao intervalo que existe entre a perceção e a conceção de uma experiência. Projetar uma experiência mentalmente implica descer um nível de vivacidade. Se imaginarmos o que é imaginar determinada experiência então descíamos outro nível. Para finalizar, é curioso que se o raciocínio a priori for incompleto, é possível que esta e outras perguntas filosóficas só possam ser respondidas a posteriori.
-Gil Jorge
Fontes consultadas:
Experiência mental (argumento do conhecimento) de Frank Jackson em “Epiphenomenal Qualia”, adaptada
ALMEIDA, MURCHO, Aires, Desidério, 50 LIÇÕES DE FILOSOFIA 11oANO, Lisboa, Didáctica editora,
2019 (7a edição)
https://academiccommons.columbia.edu/doi/10.7916/D86H4FHP
https://bigthink.com/thinking/inside-marys-room-physical-world/
https://en.wikipedia.org/wiki/The_Missing_Shade_of_Blue
https://plato.stanford.edu/entries/qualia-knowledge/#BasiIdea
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https://www.youtube.com/watch?v=aaZbCctlll4&t=1501s
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https://www.youtube.com/watch?v=ryzrOo2reKo
https://www.youtube.com/watch?v=ryzrOo2reKo&t=2s
https://www.nyu.edu/gsas/dept/philo/courses/consciousness97/papers/tye/ability.html