O Problema do Livre-Arbítrio

MÁRIO: Tal como o artista é livre de criar o que quiser, perante uma tela em branco, também os seres humanos são livres de decidirem o que fazer das suas vidas.

MARTA: Isso é uma ilusão. O artista não poderia ter feito outra obra que não a que fez. Embora ele não se aperceba disso, os temas e os estilos das suas pinturas são o resultado de acontecimentos anteriores que o transformaram na pessoa que é.”

Perante este diálogo entre o Mário e a Marta, surge uma pergunta filosoficamente interessante de ser analisada: qual dos dois tem razão? Será o Mário, que acredita que nós, humanos, somos livres de decidirmos o que fazer das nossas vidas? Ou será a Marta, que nega a crença do Mário e afirma que todas as nossas ações são resultado de acontecimentos anteriores à ação e que, portanto, não poderiam ter sido outras? Ou será que nem um, nem o outro, estão corretos? No fundo, a verdadeira essência filosófica aqui envolvida é a procura da resposta à questão: “Terão os humanos realmente livre-arbítrio?”. A este problema dá-se o nome de “problema do livre-arbítrio”.

O argumento apresentado pelo Mário chama-se “argumento da criação artística”, e é utilizado pelos libertistas para comprovar que existe livre-arbítrio e que as ações humanas são livres. Neste argumento, faz-se uma comparação da vida humana com a seguinte situação a que os artistas são sujeitos: perante uma tela em branco, eles podem decidir o que pintar, como pintar, que materiais irão usar, as cores da obra que criarão, e por aí vai. Assim como estes artistas que são livres de pintar um quadro em branco à sua vontade, existindo uma infinidade de possibilidades, os libertistas afirmam que o mesmo acontece com a vida humana: qualquer ser humano consciente das suas ações tem a capacidade de escolher uma opção entre várias outras possíveis, ou seja, qualquer ação humana é realmente livre, pelo que existe livre-arbítrio e não existe determinismo nas ações humanas.

A Marta, no entanto, contra-argumenta o que o Mário afirma, dizendo que realmente temos a sensação de que somos livres, e pensamos de verdade que estes artistas mencionados no “argumento da criação artística” são livres de pintarem o que quiserem num quadro em branco. Todavia, a Marta afirma que essa sensação é uma ilusão, e que não corresponde à realidade. Segundo a Marta, quer seja de forma consciente ou inconsciente, as ações humanas são determinadas, e mesmo que façamos escolhas (porque fazemo-las inegavelmente), essas escolhas que tomamos são, na realidade, as únicas possíveis: não há outro caminho possível, pois essas escolhas são determinadas por eventos anteriores às ações. Ou seja, nem o artista, que sente ser livre (e que, inclusive, até nós temos também a tendência de o considerar livre), é livre. Na situação apresentada pelo argumento libertista referido, e tendo em conta a perspetiva da Marta, o artista não podia ter escolhido outra forma de pintar o quadro se não a que escolheu, pois o mesmo foi determinado por fatores exteriores à sua vontade a escolher pintar o quadro da forma como o pintou. Não havia outra maneira possível de pintar o quadro. Esta perspetiva pode ser perfeitamente inserida na teoria determinista radical, que defende que as ações humanas, assim como todos os acontecimentos da Natureza, são determinadas por fatores exteriores e anteriores à própria escolha, havendo determinismo e não havendo livre-arbítrio nas ações humanas.

Dito isto, o argumento apresentado pelo Mário não me parece ser muito forte. Defender que existe livre-arbítrio e que somos livres afirmando que um artista, ser humano como todos nós, é livre de pintar o que quiser perante um quadro em branco, parece-me pouco consistente. Se a verdadeira questão a que se quer responder é “Serão as ações humanas realmente livres?”, então não faz sentido partir do princípio que um artista, ser humano como nós, é livre, e daí concluir-se que todos os humanos são livres. Ouso até dizer que este argumento me parece falacioso, estando nele presente a falácia da petição de princípio, na qual pretende-se comprovar uma conclusão utilizando-se premissas onde essa mesma conclusão já esteja subentendida. Ou seja, pressupor-se que um artista é livre, tendo em conta que ele é um ser humano, e daí concluir-se que os humanos são livres, parece-me errado e pouco coerente. Afinal, a questão que estamos a tentar responder tem a ver exatamente com se o artista (humano) é livre ou não, não sendo suficiente afirmar que simplesmente é e, daí, inferir-se que os humanos são livres.

Desta forma, concordo muito mais com o contra-argumento da Marta, que me parece ser muito mais consistente e sólido, pois a teoria associada a este contra-argumento, o determinismo radical, afirma que todos os fenómenos físicos que ocorrem na Natureza são determinados por fatores anteriores a eles (assim como a folha de uma árvore que cai depois de acontecerem diversos fatores que provocam a sua queda, tal como, por exemplo, a incidência suficiente de vento que a faça soltar-se da árvore a que está agarrada; ou tal como o vento que atinge essa folha, que foi também provocado por fatores anteriores a ele, tais como as diferenças de pressão e temperatura entre as camadas do ar, que, por sua vez, também são causadas por algum fenómeno anterior a elas, e por aí adiante). Como os humanos são seres físicos que fazem parte da Natureza, então, assim como estes fenómenos naturais, os humanos são determinados a agir de determinadas formas consoante as cadeias causais (sequências de acontecimentos) que lhes surgem até o momento da escolha. Por isso, os humanos não são livres. Os artistas são humanos, pelo que se conclui que os artistas também não são livres, e, desta forma, o argumento da “criação artística” perde todo o seu sentido. Com isto dito, parece-me claro a minha posição, mas passo a analisá-la um pouco mais a fundo a partir de agora.

O libertismo recorre a outro grande argumento, para além do já mencionado. Este é, na minha opinião, um pouco mais credível quando comparado com o da “criação artística”. Ele é o argumento da “experiência imediata da vontade”, e o seu grande alicerce é a crença de que somos livres: todos nós, imperativamente, temos a sensação de que somos livres, pois somos diariamente confrontados com diversas situações em que nos parece haver mais do que um caminho possível. Quando acordamos, por exemplo, e temos de escolher entre comer pão, bolachas, cereais, fruta, iogurte, etc, ou até simplesmente escolher não comer nada, parece-nos que somos perfeitamente livres e que é tão possível escolher comer uma banana como escolher comer cerais. Escolhemos consoante a nossa vontade, e não mediante os acontecimentos anteriores à nossa escolha. Nada nos parece levar a escolher comer a banana em vez dos cerais, por exemplo. Se escolho comer uma banana, não parece haver causas que me tenham levado a escolher essa opção em vez das outras, e, por isso, escolho de livre vontade comer a banana, pelo que tenho livre-arbítrio… ou será que não? Sim, é facto que temos essa sensação. Mas acredito que este argumento possa ser facilmente refutável: por um lado, e assim como a Marta afirma, o que nos garante que essa sensação corresponde realmente à realidade e não se trata apenas de uma ilusão? Por outro, gosto de usar este contraexemplo para clarificar o meu ponto de vista e o porquê de achar este argumento fraco: temos a sensação de que o Sol gira à volta da Terra. Temos a sensação de que somos o centro do universo, e pela nossa observação direta e a olho nu, é aparente que o Sol gira sim à volta da Terra. Por muitos anos esta crença foi totalmente aceite e praticamente não era questionada, mas, hoje em dia, sabemos que, na realidade, é a Terra que gira à volta do Sol. No entanto, a sensação diária de que é o Sol que gira à volta do nosso planeta não mudou, mesmo que saibamos que não é isso que acontece de verdade. O que quero dizer com isto tudo, é que, neste caso e em muitos outros, as nossas sensações não traduzem uma realidade, dando-nos uma falsa crença. Isto significa, então, que não é sólido afirmarmos que somos livres porque nos sentimos livres, visto que, independentemente das nossas sensações, podemos não o ser.

Agora sim, tornou-se ainda mais evidente a minha posição relativamente a este problema: o determinismo radical é, até agora, a tese com que mais concordo. Mas ainda me falta analisar uma tese que até agora não foi mencionada: o determinismo moderado. E se o determinismo e o livre-arbítrio forem, na verdade, compatíveis e ambos igualmente verdadeiros? É exatamente esta conjugação e inovação que o determinismo moderado nos trás, afirmando que estes conceitos são sim compatíveis e que ambos existem nas nossas vidas, dependendo das situações. Nesta visão, há ações humanas que realmente são completamente condicionadas pelas situações exteriores à nossa própria vontade, e nesses casos, existe livre-arbítrio; no entanto, também existem ações humanas que são livres, sendo, no máximo, apenas influenciadas e não completamente condicionadas… nesses casos, existe livre-arbítrio.

Isto parece-nos promissor: afinal, ainda existe a possibilidade de sermos livres! Porém, no meu entender, existe um enorme lapso nesta questão, que consiste em responder-se a uma pergunta filosófica levantando-se outra igualmente difícil de responder: em que situações somos livres, e em quais é que somos determinados? Não existe ainda uma divisão globalmente consensual e aceite que nos permita distinguir estas duas situações num dado cenário. Nesse sentido, creio que podemos até comparar a tese determinista moderada com o fatalismo, uma vertente do determinismo radical considerada fraca. Segundo a concepção fatalista, tudo o que aconteceu, está a acontecer a ainda vai acontecer já está escrito por algo, entidade ou ser superior a todos nós e capaz de realizar tal feito – como, por exemplo, Deus ou o Destino. (ATENÇÃO! Não confundir determinismo radical com fatalismo: o fatalismo defende que tudo está escrito por alguma entidade superior, e que nada pode acontecer de outra forma; o determinismo radical NÃO defende que o nosso futuro já está escrito, e sim que o vamos escrevendo mediante as nossas escolhas: estas escolhas são, no entanto, determinadas por fatores anteriores a elas, e não poderiam ter sido outras.) É por esse motivo que o fatalismo é considerado uma tese mais fraca, visto que, para responder ao problema do livre-arbítrio, levante outras tantas questões: Será que tal entidade com tanto poder e influência nas nossas vidas existe?

Finalmente, concluo então que o determinismo radical é, de longe, a teoria que acho mais coerente, sólida e forte. Agarra-se à ciência para provar que não somos livres, e as suas teorias são praticamente irrefutáveis a meu ver. Assim como o vento, e as ondas do mar, somos apenas mais um elemento da Natureza dentre muitos outros: o que nos distinguiria deles? Se tudo na Natureza acontece segundo cadeias causais (sequências de acontecimentos anteriores a um dado fenómeno que resultam no acontecimento desse mesmo fenómeno), e se nós, humanos, somos um elemento da Natureza, porque haveriam as nossas ações serem diferentes desses fenómenos naturais, que não resultam da vontade própria das coisas a eles envolvidas? Ou seja, porque é que a nossa sensação de liberdade nos tornaria a única componente da Natureza que age de livre vontade? Mesmo que o determinismo radical seja uma tese dura que põe em causa toda a nossa existência e modo de viver (já que toda a nossa sociedade está construída sobre a crença de que somos livres), acredito que seja a tese mais verdadeira.

-Rui Miranda

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